quinta-feira, 2 de julho de 2009

Vão de Almas, símbolo da dívida histórica do Brasil com seus escravos




VÃO DE ALMAS (AFP) — Ao raiar do dia, Zé de Marisa parte com suas mulas para anunciar a morte do velho Justino, em Vão de Almas, uma das remotas aldeias criadas há séculos no Brasil por escravos fugitivos; e que aguarda as promessas de construção de uma estrada que a conecte ao século 21, feitas pelo presidente Luiz Inacio Lula da Silva.

"O velho Justino morreu hoje. Ouviram? Avisem as pessoas, grita Zé, no cume de uma colina, numa chácara distante, do outro lado do caudaloso rio Paranã.

São seis horas até a cidadezinha mais próxima, onde poderá pegar um telefone para informar os parentes que deixaram o local.
Um velho quilombola fuma um cachimbo
durante o enterro de velho Justino

Como a maioria das comunidades de descendentes de escravos, as 400 famílias que moram na aldeia pagam caro por seu isolamento histório: não há estrada, água, luz, telefone ou médico; a única presença aparente do Estado são pequenas escolas com permanente déficit de professores.

Vão de Almas é a mais isolada das comunidades Kalunga, um território de 2..530 km2 de serra e rios, a 400 km ao norte da capital brasileira.

A histórica fuga de seus fundadores e seu isolamento geraram uma cultura de heranças africanas e indígenas que, em parte, vão se perdendo.


O falecido dom Justino, que faria 100 anos, é velado por toda a comunidade à luz de vela... Ele era o rezador de cerimônias e casamentos e curava com unguentos. Morreu sem deixar sucessor.

Elva Valera da Conceição, uma anciã magra de 70 anos, que cria 12 netos, é a parteira da comunidade.

"Como aprendi? Mistério de Deus. Meu pai me ensinou as orações", explica à AFP junto a jovens que descascam arroz e moem a farinha em grandes moendas.

O caminho através do território Kalunga, em burro e a pé pela serra escarpada, é passo obrigatório quando se precisa de alguma coisa ou se quer vender seus produtos. Não são muitas as vezes que um todo-terreno oficial se aventura pela serra.

Dom Justino decidiu que não queria fazer a penosa viagem até o hospital.

"Ser Kaluna é sofrimento", explica dona Natalina, que criou sozinha os oitos filhos e recorda com horror quando teve que cruzar as montanhas escapadas a pé, com o filho de 14 anos nas costas, para evitar que morresse de pneumonia,

As casas espalhadas pela serra são de adobe, com telhado de palha; a comida é feita em fogão a lenha, muitas vezes no chão e a fonte da vida são os rios.

O Estado nos deve, durante muitos anos nada recebemos. Não queremos ir para a cidade, passar fome, lutamos por uma estrada e educação", lamenta Zé, que foi eleito representante da comunidade no município, para aonde vai uma vez por mês.

"É indigno como tratam os Kalungas, como se não fossem gente. O Estado não oferece nenhuma condição. Tive que construir minha casa de barro e comprar burros para me instalar", desabafa a professora Sandra Ferreira da Silva.

Lula prometeu casas, eletricidade, educação, saneamento básico, no início de seu governo.

Líder da desigualdade social, nos últimos 20 anos, o Brasil acelerou o reconhecimento de territórios indígenas e uma reforma agrária para dar terra aos que nada têm.

Os descendentes de africanos foram os últimos da lista, beneficiados com o decreto do presidente Lula que, logo ao chegar ao poder, reconheceu a propriedade coletiva desses territórios fundados por escravos e considerados entidades históricas e culturais.

Só que as promessas de Lula chegam a conta-gotas, podendo, inclusive, ser revertidas com uma ação de inconstitucionalidade na Supremo Tribunal Federal.

"Essas pessoas não existiam para o Estado brasileiro antes desse reconhecimento. A maioria desses quimbolas foram encontrados em situação semelhante à vivida no século XVIII; muitos nem conheciam dinheiro", denuncia Zulu Araújo, presidente da Fundação Palmares que tutela essas aldeias das quais, calcula, existam 3.500 em todo o Brasil, com três milhões de pessoas.

O Brasil, que trouxe milhões de escravos da África, foi um dos últimos países a abolir a escravidão, em 1888. Hoje, a metade de sua população, de 190 milhões de pessoas, possui descendência africana, mas a desigualdade persiste: o salário médio da população negra corresponde à metade do recebido pelos brancos e sua presença no ensino superior não chega a 3%.


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